domingo, 7 de junho de 2020

MARCELO ALVES DIAS DE SOUZA (ASPAS)

Vai o texto da crônica publicada hoje, dia 7 de junho de 2020, no jornal Tribuna do Norte (de Natal/RN):
Para onde voltamos
De tão estereotipado e absurdo, o nacional-socialismo – ou nazismo, como ele é mais conhecido – nunca foi amplamente discutido entre nós e muito menos era cogitada a sua existência no caldo da nossa sociedade. Era matéria para historiadores e filósofos especializados. Para a população, era suficiente assistir aos documentários de guerra e aos filmes hollywoodianos, imaginando ser aquilo coisa de outra terra e de outra era, para lá de distantes.
Mas parece que a coisa mudou. Antes doutrina desacreditada, coisa de celerados, com a globalização e a Internet que a todos conecta, hoje vemos chocar de novo o tal “ovo da serpente”. E entre nós, registro.
Olhem com cuidado, por favor. Vocês verão que os ideais do nazismo estão ressurgindo nas alucinações de algumas cabecinhas fracas e, mais perigosamente, em algumas concepções governamentais ao redor da terra (que não é plana), inclusive junto de nós. A ideia de uma nação forte, um patriotismo cafona, a apologia da força militar e do autoritarismo, a depreciação das instituições democráticas, a paranoia e a verborragia (até a violência) contra quem pensa diferente, um pavor histérico do comunismo, uma simbologia mal disfarçada, a manipulação barata da opinião pública via repetição e fake news, entre outras coisas, tudo isso está por aí.
Dou aqui especial destaque ao preconceito racial e à eugenia, ignomínias do nazismo, mas que são também temas de grande interesse atualmente. O preconceito foi uma marca da “filosofia” de Adolf Hitler (1889-1945), que lançou sua fúria contra aqueles que considerava “humanos inferiores”. Os eslavos, supostamente culpados de tomar terras que pertenciam ao povo alemão, padeceram nas mãos do ditador. Os negros ameaçavam a pureza sanguínea europeia através da França. Até os italianos, futuros aliados, mas de sangue deveras misturado, foram objeto do preconceito de Hitler. Os judeus, claro, foram as vítimas de uma das maiores barbaridades da história da humanidade, batizada de Holocausto, numa mistura perversa de preconceito e eugenia. E hoje vemos aflorar, nos EUA e aqui no Brasil, seríssimas questões acerca do preconceito racial (“Vidas negras importam”) e do tratamento dado (na verdade, do desleixo) à atual pandemia, que tem beirado a eugenia dos mais idosos e vulneráveis.
Bom, alguém pode perguntar ou mesmo objetar (se simpatizante, sem saber, de ideias nazistas): mas o nazismo de ontem não teve e o ovo da serpente de hoje não tem, cada qual a seu modo, um certo apoio na população? Hitler foi eleito, fato. E o ovo da serpente chegou ao poder por decisão dos eleitores. Como explicar isso? Como explicar esse apoio a coisas tão abjetas?
Tenho duas respostas até reconfortantes. Ter apoio popular não quer dizer tudo. Desde que o mundo é mundo, ludibriados os eleitores, os votos servem aos interesses de grupos poderosos ou à vontade de um indivíduo, sobretudo se este é um demagogo populista. Em segundo lugar, a escalada nazista ao inferno foi e é feita de forma sutil. Eles ampliam seus poderes pelo uso de expedientes que, às vezes, nos passam desapercebidos: propaganda massiva com o fim de manipular a opinião pública; o uso programado de ritos e tradições para criar uma aura de mito em torno do seu líder; controle governamental centralizado da educação e da cultura; e a criação e utilização de aparatos reservados de informação e segurança. Quem leu “Mein Kampf” (1925), de Hitler, sabe do que estou falando. Depois, já é tarde. A banalidade do mal está instalada. Mas, nestes dois casos, seríamos vítimas das circunstâncias.
Há uma explicação, entretanto, que me preocupa enormemente. Peguemos, apenas como exemplo, a questão do preconceito racial. Ele foi bem-sucedido com os nazistas, ele é bem-sucedido agora, mesmo que ignóbil, ainda que irracional, porque estaria, dizem, enterrado na nossa psiquê. Isso nos mostra algo de muito perigoso na própria natureza humana.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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